“Para uma cartografia da noite”, poemas do moçambicano Álvaro Taruma

Será lançado no dia 26 de fevereiro, na cidade de Maputo, o livro “Para uma cartografia da noite”. Trata-se do primeiro livro de Álvaro Taruma, um jovem moçambicano dedicado, há muito, ao mundo das letras.

Abaixo, a Revista Pazes selecionou aos seus leitores alguns dos textos constantes no livro para a apreciação de todos:

I
Acendes-me no coração uma vela, a iluminada memória dos barcos; deixa que lhe rase uma ave, uma estrela; o rumor brando da tempestade costurando o azul das marés, as ondas inquietas rentes a retina que as orna; a orla distante como a casa para onde a saudade retorna. Nas mãos em concha, escreve-me as tuas sedes, as tuas águas, o bálsamo do silêncio que a palavra no seu íntimo revela, o habitável perfume das manhãs, a contígua janela ao umbral da noite que as desvela. Emprestas-me o amarelo das tuas tardes, o sol ao meio repartido, pão aberto para a revisitação dos sentidos; dai-me um remo, a rima necessária para o meu poema náufrago. Sê ilha: catedral de terra e espuma, onde um búzio calado é um canto na boca da amargura. Refaz-te na minha pele cansada e apaga-me esta cicatriz, esta agrura; que eu, docemente, acordarei levitado, louco, quase incontido no lume dos seus braços.

II
Não te quedes amor ao núcleo estrelar da noite, há o sol amplo subindo no vagar das manhãs, vinde espreitar aqui dentro do meu sonho, mas antes reparte este pedaço de pão que detenho por entre as mãos, ante a fome de todas as fomes e, atenta, perscruta o respirar dos poros, o sangue em fuga ao ciclo inicial, ao núcleo de fogo imerso no meu ser. Estende-me as tuas mãos, água para a minha sede, a vagem colhida para a provisão dos sentidos.
Vê: há tanta coisa ainda dentro do meu sonho, esta visão aberta ao ilimite, mas fecha, por favor, as persianas pois há um mundo que só nos cabe aqui dentro deste frágil aposento: o coração.

III
Se a meta amor fosserevistapazes.com - "Para uma cartografia da noite", poemas do moçambicano Álvaro Taruma
A metamorfose das borboletas
Em quantas luas a teríamos completa
No ciclo desta paixão que nos habita?

IV
Aqui reina a palavra, o poema, o amanhecer de todos os fonemas sobre as casas, sobre a vida, sobre os cursos de água, sobre as padarias vigiando a fome, sobre o sol aludindo o fogo, a alquimia, sobre um rio correndo na mão em premonitória quiromancia. Mas fala-se também do puro instante da aparição, da vida regendo os sonhos, a língua, do manejo do verbo, da caligráfica ave, do oráculo da fala ou da poética gramática da escrita.
Diz-se ainda de uma janela contemplativa, do alfabeto entregue em oferenda e do alumbro mágico de quem cria.
Diz-se dessa palavra temperada: o sol, esse imenso latifúndio de luz, vindima da esperança. Diz-se da sua ramagem incendiária; a lavrada substância do fogo; favo do mel da claridade; o sol rasgando o hímen resoluto das manhãs. Por isso:

V
Por nada, por tudo
Por um instante de luz
Abro o cárcere de palavras, o mudo
Silêncio onde me pus.
Desato o poema, meu escudo
Contra a escuridão que me seduz
Mas a liberdade que aludo
Nenhuma poesia traduz.

VI
Cópula cortante, o amor: a lâmina sobre a lenha, matéria incisiva sobre a matéria incendiária. O silêncio gritante que é isso, o murmúrio azedo da faca aparando, separando e dividindo o corpo duro do fogo, sua forma sólida e incombustionada; o gume ferindo o incêndio petrificado. Penso então como é ilusório o fogo, sua natureza levitante e vertical, tão volátil e inexacto; não arderá somente nos olhos mantendo-se o lume tão distante ou inexistente na superfície que vemos arder? Penso, sobretudo, na luz, diária peregrina do sol, pisando os recantos da cidade, andando infalivelmente sobre as águas, tombando da invisível ramagem do vento e regendo as sombras e os seus movimentos. Quão ilusória pode ser a luz? Não falo do mistério que a sustém, da perplexidade dos seus raios, da líquida herança do magma, da ancestralidade dos vulcões ou da sua incerta meteorologia. Falo sim do amor, luz enquanto guia. Não será esta uma adaga lisa e bifurcada? Quem nos resgata do escuro quando a bússola solar nos desvia?
Álvaro Fausto Taruma nasceu em Maputo no ano 1988. É formado em Sociologia e Antropologia, e possui outra formação em Ensino de Portugês, pela Universidade Pedagógica. Teve uma curta passagem pela área da Educação e actualmente exerce funções na área do empreendedorismo social. Ao longo do tempo, dedica-se ao cultivo do texto escrito, em vários géneros, possuindo uma publicação dispersa em jornais e revistas, sendo que esta obra marca a sua estreia – em livro – no campo da literatura.revistapazes.com - "Para uma cartografia da noite", poemas do moçambicano Álvaro Taruma






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