“Permissão de saída”, ponderações do juiz João Marcos Buch

Por João Marcos Buch

Faz algum tempo os familiares de dois detentos foram até o Fórum para falar comigo. Eu os encontrei por acaso no corredor das Varas Criminais. Quando me viram, foram logo me chamando. Era verão, com muito sol e calor e percebia-se pelo suor de suas faces que tinham caminhado um bom tanto para chegar na Justiça. Eu os encaminhei logo ao gabinete. Não tinham advogado e nem condições de contratar um. Uma moça que compunha o grupo falou por todos. Contou que o irmão mais novo havia morrido em acidente de trânsito e queriam que os dois outros irmãos, que estavam presos, pudessem ir ao velório. Respondi que a questão era administrativa e que deviam se reportar ao gestor da unidade prisional.

Soube então que já haviam feito isso, mas que a informação era de que por falta de escolta os dois não sairiam para o velório. Pedi que aguardassem, confirmei a informação com a unidade prisional e deliberei nos processos de execução penal. Mandei que a escolta fosse feita. O enterro seria na manhã do dia seguinte e ficou ajustado que os detentos seriam levados um pouco antes do enterro. Os familiares me agradeceram. A moça foi além e disse:

– Minha mãe está desolada, não para de chorar. Além disso ela disse que não adiantaria virmos ao Fórum, pois não havia justiça. Ela sempre falou que a cadeia vai acabar com a vida dos meus irmãos e nunca aceitou a forma como eles são tratados. Mas agora o senhor pode ter certeza, quando ela os ver no velório, ao menos voltará a acreditar na Justiça.

Eu agradeci e disse que mandasse meu fraterno abraço à mãe dela, cuja dor que devia estar sentindo eu jamais sentiria.

Infelizmente, uma semana depois recebi a mesma moça no Fórum. Ela foi contar que os irmãos na manhã do enterro tinham sido tirados da cela, de banho tomado e devidamente trajados, sendo levados até outro espaço para aguardar a escolta. Haviam aguardado por horas. No final não foram escoltados, não foram ao velório. Segundo ela o motivo tinha sido a falta de viatura e de efetivo para a segurança.

Na ocasião, requisitei sindicância e apuração das responsabilidades por desobediência. A ordem havia sido dada, a escolta deveria ter sido feita, o estado tinha sim condições de realizar o ato, bastava remanejar recursos humanos e viatura. Não o fez.

Acima da lei que já prevê o direito de saída para acompanhar enterro de familiar (art.120, I, da LEP), está a Constituição a estabelecer como direito fundamental a vedação de penas crueis e a garantia do respeito à integridade moral do detento (art.5º, XLVII, “e” e XLIX). Mas mais importante, está a Constituição a estabelecer como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, em seu art.1º, III, o fundamento da dignidade da pessoa humana. Neste ponto, talvez poucas coisas se comparem à dignidade humana do que direito de estar ao lado dos seus no momento da despedida.

Esse direito foi negado para aqueles detentos e em última análise para os seus entes. A pena foi além dos condenados, atingiu o seio de sua família. E a mãe daquela moça com olhos tristes continuaria a não acreditar na Justiça. Como se a perda de um filho já não fosse tristeza suficiente!

Observação: detalhes e algumas situações foram modificados para efeito de não identificação.

João Marcos Buch é Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Joinville/SC.

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