“Moinho do tempo”, um belíssimo poema de Cora Coralina que nos leva a refletir sobre a passagem dos dias

Cora Coralina (1889-1985) foi uma poetisa e contista brasileira. Publicou seu primeiro livro quando tinha 75 anos e tornou-se uma das vozes femininas mais relevantes da literatura nacional.

Ana Lins dos Guimarães Peixoto conhecida como Cora Coralina, nasceu na cidade de Goiás, no Estado de Goiás, no dia 20 de agosto de 1889. Filha de Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, desembargador, nomeado por Dom Pedro II, e de Jacinta Luísa do Couto Brandão cursou apenas até a terceira série do curso primário.

Em 1965, com 75 anos, Cora Coralina conseguiu realizar o seu sonho de publicar o primeiro livro “O Poema dos Becos de Goiás e Estórias Mais” Ebio

Pé de meia sempre vazio.
Vazios os armários
Seus mistérios desmentidos.

Fechaduras arrebentadas, arrancadas.
Velhas gavetas de antigas
mesas de austeras salas vazias.
Os lavrados que guardavam,
vendidos, empenhados,
sem retorno.
As velhas gavetas
guardam sempre um refugo de coisas
que se agarram às casas velhas e acabam mesmo nos monturos.
As velhas gavetas
têm um cheiro nojento de barata.

As arcas desmanteladas.
Os baús amassados.
Os abastos resumidos.
A fornalha apagada.
Economizado o pau de lenha.
Pelos cantos as aranhas
diligentes, pacientes, emaranham teias.
E a casa grande se apagando,
caindo lance a lance, seus muros de taipa.
E um gato miau, fedendo pelos cantos.

E a gente se apegava aos santos,
tão distantes…

Rezava. Rezava, pedia, prometia…
O tempo foi passando,
os santos, cansados, enfastiados
economizando os milagres do passado.
No fim os compradores de antiguidades
acabaram mesmo levando os oratórios
e os santos, que fossem de madeira,
dando lugar à TV, ao Rádio RCAVictor de sete faixas.

A gente era moça do passado.
Namorava de longe, vigiada.
Aconselhada. Doutrinada dos mais velhos,
em autoridade, experiência, alto saber.
“Moça para casar não precisa namorar,
o que for seu virá”.
Ai, meu Deus! e como custava chegar…
Virá! Virá!… Virá, virá… quando?
E o tempo passando e o moinho dos anos moendo,
e a roda-da-vida rodando… Virá-virá!
A gente ali, na estaca, amarrada, consumida
de Maria Borralheira, sem madrinha-fada,
sem sapatinho perdido,
sem arauto de príncipe-rei, a procurar
pelos reinos da cidade de Goiás
o pezinho faceiro do sapatinho de cristal,
caído na correria da volta.

A igreja, refúgio e confessionário antigo.
O frade, velho e cansado. Frei Germano, piedoso,
exortando paciente e severo. “Minha filha, a virgindade
é um estado agradável aos olhos de Deus. Olha as santas virgens,
Santa Terezinha de Jesus, Santa Clara, Santa Cecília,
Santa Maria Mãe de Jesus. Deus dá uma proteção especial às virgens.
Reza três ave-marias e uma salve rainha a Nossa Senhora e vai comungar”.

A gente saía confortada, ouvia a missa,
cumpria a penitência e comungava humildemente, ajoelhada,
véu na cabeça em modéstia reforçada.

Depois, depois, a solidão de solteira, o sonho honesto de um noivo,
o desejo de filhos,
presença de homem, casa da gente mesma, dona ser. Um lar.
Estado de casada.

A pobreza em toda volta, a luta obscura
de todas as mulheres goianas. No pilão, no tacho,
fundindo velas de sebo, no ferro de brasas de engomar.
Aceso sempre o forno de barro.
As quitandas de salvação, carreando pelos taboleiros
os abençoados vinténs, tão valedores, indispensáveis.
Eram as costuras trabalhadas,
os desfiados, os crivos pacientes.
A reforma do velho, o aproveitamento dos retalhos.
Os bordados caprichados, os remendos instituídos,
os cerzidos pacientes…
Tudo economizado, aproveitado.
Tudo ajudava a pobreza daquela classe média, coagida, forçada
a manter as aparências de decência, compostura, preconceito,
sustentáculos da pobreza disfarçada.
Classe média do após treze (13) de maio.
Geração ponte, eu fui, posso contar.

O poço d’água, a maravilhosa servidão da casa.
Toda a família na dependência do poço, da corda, do balde.
A água lá no fundo, cisterna, também chamada.
Um dia, dia incerto e já previsto o desastre, o transtorno.
Todos atingidos, impressionados, participantes,
da porta da rua ao fundo do quintal. Arrebentou a corda do poço…
gasta e cansada, exausta da sua resistência.
Corda vigente, corda de arrocho, corda de enforcar,
lá se foi com seu pedaço, agarrada ao balde, descansar
no fundo profundo do poço.

A casa toda assanhada, informa: arrebentou a corda do poço.
Vamos tentar a retirada de salvação geral.
Todos participantes, impressionados, coniventes na salvação
do balde, o resto da corda.
A vizinha de lado comparece por cima do muro, oferece seu balde,
dá palpites, solidária.

Uma longa vara, um gancho na ponta a vasculhar
o fundo escuro, em passeio lento e paciente. Assistência,
a torcida geral. Afinal, ponta e gancho enlaçam o que desceu
e sobem triunfante. Faz-se a emenda com perícia,
gente antiga, afeita a essa e outras emergências.
Cada qual aos seus interesses e, volta a casa
a rotina da vida do passado.

Tanta pobreza a contornar.
Tanto sonho irrealizado, tanto abandono.
Tanta água de sonho puxado do poço da imaginação…

Valiam as velhas, seus adágios de sustentação:
Conter e reprimir as jovens, dar-lhes esperanças,
ensinar-lhes a paciência, a vontade de Deus.
E a gente a querer abrir uma brecha naquela muralha
parda de pobreza e limitação.

Hoje sobrará para todos mil cruzeiros.
Me faltando sempre o vintém da infância. Bem por isso
mandei fazer um broche de um vintém de cobre
e preguei no meu vestido do lado do coração.

Sentir a presença daquele vintém
pobre da minha infância, tão procurado, tão escasso!…
Sentir a metade daquela bolacha que repartia comigo
o carinho da minha bisavó, na sua pobreza mansa.
Estender de novo minhas pequenas mãos de criança
para as quitandas, broinhas, brevidades
e biscoitos que me dava tia Nhorita,
ela, se findando numa velhice tão bonita
como outra igual não vi.
Seu sorriso de Mona Lisa,
seu mistério de Gioconda.
Ter nos meus braços aquela boneca de loiça vinda de Paris,
de chapeuzinho, enfeite, sua flor minúscula, azul, lá da França.
Sapatinhos e meias, loira, olhos azuis e que dormia…
e que nunca foi minha.
Eu vivia aquela boneca, sonhava e ela sempre ali, inacessível,
na estática da vitrine envidraçada da loja de “Seu” Cincinato.

Voltar à infância… Voltar ao paraíso perdido
de uma infância pobre que pedia tão pouco!
Menino Jesus, sorridente no oratório.
Uma bolinha azul nas mãos poderosas sustentando o mundo.
Ele, tão pequenino e frágil.
Tantos santinhos pobres me protegendo,
tantas velhas me ensinando as regras da vida…
Eu era cega, ceguinha, peticega, sem nada ver.
Mouca, surda,
surdinha, sem nada ouvir…
Chegar hoje a essa evocação dolorida e rude…

Meu vintém de cobre! Arrebentar todas as amarras
e contenções represadas.
Meu vintém! está comigo nestas páginas de escrever.

– Cora Coralina, no livro “Vintém de Cobre”. São Paulo: Global Editora, 2012.






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