Em tempos de realidades tão sombrias, o que você ainda é capaz de enxergar? – crônica de Nara Rúbia Ribeiro

Por Nara Rúbia Ribeiro

Eu não acredito no acaso. Para mim, tudo tem um porquê. “Acaso” é o nome dado a um determinado fato cuja complexidade nos foge à compreensão. E é bom que de fato fuja. A tentativa de racionalizar a linha que tece os acontecimentos da vida pode nos levar a devaneios infrutíferos, a conjecturas infundadas: pura perda de tempo. Basta sabermos que a linha existe e seguirmos adiante.

Após um longo período de quase absoluto isolamento devido à pandemia da covid-19, decidi fazer algumas coisas que sempre desejei muito e que foram objeto de procrastinação. Uma delas era conhecer as cidades históricas de Minas Gerais. Em abril deste ano, uma amiga organizava uma excursão para Mariana, São João del Rei, Ouro Preto e Tiradentes e, de última hora, decidi integrar o grupo.

Creio que nenhum de nós saiu sem sequelas dessa pandemia. Todos perdemos muito daquilo que era mais caro e sagrado em nossas vidas. Perdemos parentes e amigos. Perdemos muito da nossa saúde física e mental. Perdemos empregos, projetos; perdemos a ingenuidade de achar que algo nesta existência seja previsível. Perdemos, em essência, a nossa esperança.

Eu tenho alma de poeta e, a cada vez que vejo o noticiário, uma fração do meu espírito se perde, arrefecido, drenado pela dor. Meu olhar, treinado a ponderar a beleza das pequeninas coisas, a grandeza de invisíveis gestos, a ver a eternidade na intermitência, fica cego diante do excesso de realidades tão sombrias.

Foi com esses olhos meio mortos que resolvi pegar o trem que vai de São João del Rei a Tiradentes. Uma belíssima Maria Fumaça que vagarosamente fez com que percorrêssemos espaços e tempos, enquanto o povo hospitaleiro tira o chapéu e acena, ou sorri e deseja boa viagem.
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Ainda na estação a aguardar a partida do trem, estava eu à janela, distraída como sempre, quando uma pequenina borboleta amarela veio até mim e, como se quisesse atestar que fora notada, pousou em meu braço esquerdo. Eu a olhei incrédula com aquele feito e ela permaneceu ali por uma fração de segundos e afastou-se devagar, em movimentos de ida e volta, como se de algum modo dialogasse comigo.

O que ela queria dizer-me, nunca decifrei. Mas, a partir de então, passei a notar cada borboleta amarela que encontrei pelo caminho. Ah! E foram tantas! Muitas vezes via dezenas a um só canto, vez ou outra, alguma se mostrava sozinha e mais próxima do trem. Vi dezenas, centenas, milhares, talvez. E foi belo o passeio, cravejado de borboletas diversas, não só das amarelas, por toda a parte. Paisagens magníficas. Riachos, flores silvestres, as serras, os bichos. A sensação de entrecortar o presente e o passado, de não-pertencimento ao tempo…

Aquela borboleta amarela que me acariciou o braço fez com que eu percebesse que é necessário reaprender a fixar o olhar também naquilo que positivamente me importa. É preciso olhar fixamente o belo para que voltemos a enxerga-lo, de modo que novamente possamos reconhece-lo ao longo do caminho. Porque eu a vi, pude deter-me a centenas de outras borboletas amarelas que povoavam o caminho.

À minha alma, apenas os bem-te-vis falam tanto quanto as borboletas. Símbolos de mudanças, da metamorfose que é inerente a cada um de nós, seres em perene evolução. O amarelo evoca a nobreza,  a riqueza, a prosperidade, o calor e a luz…

Cada um de nós tem seus gatilhos poéticos. Tem algo que o toca, que o fere de ternura, que o constrange a ser maior. Quando esse “seu algo”, quando a sua “borboleta amarela” pousar em seu braço, vier ao seu encontro, visitar o seu sonho, falar ao seu coração: não acredite no acaso.

Olha atentamente e treina a sua visão para que você possa voltar a enxergar as belezas que ainda povoam o mundo. Por maiores que sejam as trevas nas quais imergimos, o dia vem raiando e borboletas ainda se banham de orvalho sobre a relva. Que nossos olhos não estejam mortos diante dos infinitos milagres da vida!






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