Ela deixou a filha pequena sozinha na classe econômica e foi se sentar na primeira classe

Por Fabiana Santos
Uma das premissas deste blog é não julgar nenhuma mãe. Ser julgada me deprime e tenho certeza que a você também. Já tive uma amizade prejudicada por um julgamento meu. Já li por aí coisas horríveis de quem se acha dona da razão.

Mas eu não posso, nem consigo, passar batido por coisas que acontecem bem debaixo do meu nariz. Então, eu vou contar pra vocês o que assisti durante o vôo que eu peguei voltando pra casa, depois de um período de férias no Brasil. O que eu quero é abrir uma reflexão.

Estava com a minha filha sentada em dois assentos que ficam juntos. Na nossa fileira, mas separada pelo corredor, uma mulher colocou uma menininha, que carregava uma boneca. Era a mãe da criança que, falando em português, disse: “Fica direitinho aí, ok?”. E foi embora para se sentar na parte da frente do avião, super confortável com cadeiras isoladas que viram cama, cardápio variado, bebida à vontade, primeira classe.

Eu achei que não tinha entendido direito, mas foi exatamente assim. Ouvi a aeromoça explicando, com muita naturalidade para o vizinho de assento, que a mãe (uma mulher bonita, na faixa dos 30 anos, usando salto plataforma) ia se sentar longe. A cortina para dividir “as classes” foi fechada, mãe e filha ficariam separadas por nove horas, incluindo uma noite. Ao lado da menina, o rapaz puxou conversa com ela. Acabou fazendo às vezes de quem deveria estar tomando conta da criança: colocou o cinto de segurança nela, abriu pra ela o cobertor, ajeitou o travesseiro, colocou no canal de tv infantil e conversou perguntando sobre a vida dela enquanto o avião decolava. Eu só pensava: caramba, temos um novo conceito de “pai de primeira viagem”.

A menininha estava ao meu lado, foi impossível não prestar atenção. Na conversa que ouvi, descobri que ela tinha 6 anos e a mãe era brasileira. Ela não tocou na comida. Nem no jantar, nem no café da manhã servidos. Tomou um copo de suco por insistência do vizinho de assento. De vez em quando, ela me olhava pra ver o que eu fazia com a minha filha. Depois de ficar vidrada num filminho, acabou pegando no sono. A mãe apareceu uma única vez, não passou da cordinha de isolamento das classes e perguntou se ela não queria comer. Ela disse que não e a mãe voltou para seu assento original, bem tranquila.

Pela minha cabeça passava muita coisa. Como assim deixar minha filha sentada ao lado de um estranho, durante uma noite inteira? E se ele fizer algo com ela? E se ela ficar com medo de turbulência? Se precisar ir ao banheiro? A mãe estava longe e literalmente de costas para o que pudesse acontecer com a filha. Comentei com o meu marido achar muito estranho os comissários de bordo concordarem com a decisão da mãe. Afinal, era uma criança de 6 anos viajando sozinha.

Porque a mãe não quis ficar no mesmo local com a filha, já que havia lugar vazio na mesma fileira? Por que não tentou, sei lá eu, fazer a filha ficar sentada junto dela no mesmo assento, já que a poltrona da mãe era bem larga? Fiquei um bom tempo pensando nessas coisas.

Pensei que não queria achar isso ou aquilo sobre a mãe da menininha. Comecei então a listar os pequenos absurdos que todas nós somos capaz de fazer: ficar grudada em celular enquanto um filho pede atenção, por exemplo. Sou melhor mãe por fazer este tipo de coisa mas jamais admitir sentar longe da minha filha num avião? Mas peraí, a situação de deixar uma criança sozinha dessa maneira me parece surreal. Se eu não tivesse acompanhado a cena, talvez nem acreditasse.

Pensei ainda que quando a gente vira mãe, a nossa porção egoísta pode ou não sofrer mudanças. E eu não posso sair por aí medindo o egoísmo dos outros. Mas é que eu torço demais que, nessa vida cheia de cada um por si, o fundamento materno que eu acredito ainda prevaleça: o de que ser mãe é se desprender de si mesma para pensar no outro que você colocou no mundo (ou escolheu para estar no mundo com você). E, pra mim, não tem primeira classe que substitua ter um filho pequeno aninhado junto a você durante um vôo! (pronto, falei o que estava engasgado).

Fabiana Santos, além de blogueira do Tudo Sobre Minha Mãe, é jornalista freelancer em Washington-DC. O vôo desta história foi entre São Paulo e Washington-DC, onde eles moram.