A automanipulação

Não acredito que alguém realmente goste de ser manipulado, mas todos nós somos, de uma forma ou de outra, mesmo que muitos de nós sejam capazes de supor de si mesmos que nunca se deixam manipular, já que se julgam esclarecidos e espertos demais para isso. Todos nós, querendo ou não, somos manipulados, pela mídia, por propagandas, por especialistas de marketing, pela família, pelo chefe, pelos amigos… Mas o pior de tudo: somos constantemente manipulados por nós mesmos.

Ao longo de nossa vida, assumimos muitos conceitos e preconceitos, posturas e comportamentos que nos são ensinados. Tudo isso fica gravado em nós, definindo (e com certeza limitando!) nossa forma de ver o mundo, nos pré-condicionando. Presos nesse condicionamento, tomamos então nossas decisões e formamos nossos julgamentos, crendo que fazemos isso em liberdade, sem percebermos que, no fundo, muita coisa já foi decidida dentro de nós bem antes de termos consciência do que estamos decidindo ou de como estamos nos posicionando.

Em outras palavras, isso significa que nosso cérebro manipula nossas decisões com base no condicionamento que carregamos conosco e nas informações que salvamos em nosso “disco rígido” ao longo de nossa vida, independentemente dessas informações estarem corretas ou não, de fazerem ou não sentido.

Há muitos anos, assisti um documentário sobre o assunto (infelizmente, faz tanto tempo que não posso citar a fonte). Foi mostrado um experimento, no qual cientistas escolheram um vinho tinto de qualidade e preço médios, comprado em um supermercado. Esse vinho foi dado a um grupo representativo de pessoas (que bebiam vinho tinto regularmente) para que fossem degustados. Cada pessoa recebeu duas taças do mesmo vinho, mas acreditando que seriam dois vinhos diferentes. Depois de provar “os vinhos”, as pessoas deveriam dizer qual dos dois era melhor. O resultado foi misto, com uma parte do grupo dizendo que um vinho era melhor, outra parte preferindo o “outro” vinho e um terceiro grupo (o maior de todos) constatando que não havia nenhuma ou pouca diferença entre os dois. Até aí tudo bem, pois as pessoas experimentaram “os vinhos” sem nenhum preconceito, já que não receberam qualquer informação adicional.

No próximo passo, o mesmo grupo repetiu o experimento, com o mesmo vinho, mas acreditando que seriam dois vinhos diferentes dos primeiros. Mas, dessa vez, antes de provar o vinho, os participantes do estudo receberam a informação de que um vinho teria custado 4,00 euros a garrafa e o outro 200,00 euros. Aqui o resultado foi bem diferente: a grande maioria disse que o vinho mais caro era muito melhor. Somente uma minoria insignificante preferiu o vinho mais barato e ninguém achou que se tratava do mesmo vinho.

Ou seja, sem nenhuma informação adicional, a maior parte das pessoas confiou no próprio paladar e percebeu que não havia diferença entre os “dois” vinhos. Mas, ao repetirem o experimento sabendo dos preços extremamente diferentes, foi acionado no cérebro o “preconceito” de que um vinho tão mais caro tinha que ser melhor, já que acreditamos que o que é bom custa mais. O experimento foi repetido com chocolate e outras pessoas e o resultado foi o mesmo.

Bom, agora poderíamos supor que a manipulação veio de fora, por parte dos cientistas que coordenaram o experimento, através das informações erradas, o que seria verdade, mas só meia verdade, pois a manipulação não teria funcionado se as “cobaias” não carregassem em si a predisposição de acreditar que o que custa mais é melhor e se elas tivessem confiado no próprio paladar e não nessa informação.

Vejamos outro exemplo: eu estava uma vez em uma festa organizada por alemães numa paróquia em Salvador. Quem conhece o paladar do baiano sabe que naquela terra se prefere o doce ao amargo ou azedo. E quem conhece o chucrute (repolho azedo) pode concluir que normalmente um baiano dificilmente gostaria dessa especiaria alemã. Pois bem, havia chucrute no buffet e fiquei admirado ao ver os baianos comendo aquele negócio azedo puro, mastigando com gosto e supondo que era uma delícia. Acredito que só gostaram por terem sido anteriormente manipulados pela informação gravada de que “se é alemão, só pode ser bom”. Não creio que a reação teria sido a mesma se alguém tivesse dito que aquela comida vinha de Feira de Santana, de Aracaju ou de qualquer outra parte do Brasil.

Aqui a manipulação teria vindo de fora se tivéssemos aprendido na Bahia que chucrute seria uma coisa gostosa, mas esse não foi o caso. Ninguém disse isso. Mas as pessoas, não somente na Bahia, acreditam que as coisas vindas da Alemanha seriam boas. O “sabor delicioso” do chucrute foi provavelmente resultado dessa crença e uma conclusão tirada dentro das próprias pessoas. E é isso que chamo de automanipulação.

Não é assim que agimos o tempo todo? Não tiramos nossas conclusões com base em nosso condicionamento, ao invés de tentar analisar uma situação de acordo com o que realmente (!) se encontra diante de nós? Não julgamos outras pessoas conforme critérios que carregamos conosco, ao invés de enxergar quem a pessoa realmente é? Não escutamos e enxergamos as coisas de forma seletiva, filtrando e absorvendo somente aquilo que condiz com nossas convicções (pré-moldadas)?

Sim, manipulamos a nós mesmos sempre que torcemos as informações para que caibam nos moldes que definimos como certos, ao invés de atualizar nossas crenças e adaptá-las ao que é real. Manipulamos a nós mesmos também quando tentamos nos convencer que somos mais especiais do que verdadeiramente somos, quando usamos nossos preconceitos para supor que alguém é inferior, seja lá por qual motivo, e quando nos identificamos mais com ilusões e apetrechos do que com a verdade e a essência das coisas. Isso acontece, por exemplo, quando nos vemos em superioridade por dirigir o carro mais caro que o do vizinho ou por possuir um iPhone, enquanto um colega “só” tem um Samsung, ou mesmo quando acreditamos que cabelos lisos e olhos verdes são sempre mais bonitos que cabelos crespos e olhos castanhos.

Manipulação, seja externa ou externa, é algo que atravanca nosso desenvolvimento, pois nos limita e impede que sejamos senhores e senhoras de nossos atos, que sejamos seres autárquicos, realmente livres e possamos assumir uma postura consciente na vida. Portanto, faz muito sentido despertar um senso crítico em relação a qualquer tipo de manipulação, principalmente quando a manipulação vem de dentro de nós mesmos. Para que se possa atingir esse senso crítico, é necessário, todavia, como primeiro passo, assumir que somos manipulados e que manipulamos, que temos muitas opiniões (pré-)formadas sobre muitas coisas e que nenhum de nós é suficientemente esclarecido e esperto para se isentar disso. O segundo passo é exercitar a percepção da manipulação, tentando reconhecer quando ela acontece, separando nossos preconceitos, nosso condicionamento do que é real, tendo a coragem de parar de mentir para nós mesmos e viver o momento com maior consciência e menos ingenuidade, deixando de esperar que as coisas sejam como gostaríamos que fossem ou como aprendemos que deveriam ser.

Por Gustl Rosenkranz ·






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