“Ama-se por memória” –  poema de Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)

O belíssimo poema abaixo foi atribuído por pessoa a Álvaro de Campos e é datado de 17-6-1929.

Conforme nos diz o site E-biografia, Álvaro de Campos é “um dos mais importantes heterônimos de Fernando Pessoa. Foi criado em 1915, nasceu em Tavira, no extremo sul de Portugal, a 15 de outubro de 1890. Estudou Engenharia Naval, na Escócia. No entanto, não exerceu a profissão por não poder suportar viver confinado em escritórios.

Álvaro de Campos é um poeta moderno, aquele que vive as ideologias do século XX. Engenheiro de profissão vê o mundo com a inteligência concreta de um homem dominado pela máquina. De temperamento rebelde e agressivo, seus poemas reproduzem a revolta e o inconformismo, manifestados através de uma verdadeira revolução poética” (Ebiografia)
Poema de canção sobre a esperança
I

Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar os lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios —
Os melhores lírios —
E as melhores rosas
Sem receber nada.
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.

II

Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambulhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
(Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem —
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestido azulinho, meu Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser…
És tão nova — tão jovem, como diria o Ricardo Reis —
E a minha visão de ti explode literariamente,
E deito-me para trás na praia e rio como um elemental inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!

17-6-1929
Álvaro de Campos – Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. – 106.






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