“A vida é feita de gestos”, por Marina Colasanti

Carnaval acabou, e é apaziguante recompor a ordem costumeira. A vida, mais do que de carros alegóricos, é feita de pequenos gestos.

O começo do dia não é quando o executivo chega ao escritório e cumprimenta a secretária, nem quando a cirurgiã veste o avental esterilizado ou quando o pedreiro pega o primeiro tijolo da pilha. O dia começa quando a água é posta a ferver para o café, quando sementes de mamão rolam sobre a bancada da pia, quando o aparelho de barbear desliza sobre o rosto. Os gestos miúdos em que nem reparamos, gestos que parecem realizados apenas pelas mãos, sem a contribuição da mente, vão construindo a ordem em que o dia se apóia.

Tudo exige arrumação. As gavetas, as pastas, as mensagens de celular, a geladeira, o e-mail, parecem solicitar uma ordem determinada. A todo momento colhemos um item do nosso cotidiano e o mudamos de lugar. Dobramos um papel que estava sobre a mesa ou uma peça de roupa que jazia ao pé da cama, e o guardamos ali onde em algum momento anterior estabelecemos que fosse o ponto mais apropriado para a sua permanência. Quando por acaso olhamos em volta para conferir, temos a impressão de que o espaço da convivência fez-se mais aberto.

Todos os dias usamos talheres que têm que ser lavados e guardados depois de enxutos, e que novamente serão usados, lavados e guardados, para depois, novamente….. Todos os dias, mais de uma vez, escovamos os dentes, e cada vez pegamos a escova, desatarraxamos a tampa da pasta, esprememos o tubo sobre a escova, atarraxamos a tampa, abrimos a torneira, escovamos os dentes acima e abaixo, fechamos a torneira, guardamos a escova, enxugamos a boca. Quantos mínimos gestos para garantir um momentâneo hálito de hortelã.

Não é a isso, porém, que chamamos rotina. Rotina é o alô à secretária, a chegada ao hospital, a pilha de tijolos. Os pequenos gestos que levaram até esse falso começo do dia, nem são considerados. Nenhum deles, tão mínimo que beira a insignificância, tem resultados notáveis. Se depois de fazer a barba, a mão não passar pelo rosto avaliando a lisura da pele, a pele não ficará menos lisa. Se o papel sobre a mesa não for dobrado, nenhum dano advirá a seu conteúdo. O pequeno gesto é, por vezes, apenas parte de outro pequeno gesto. Mas se nenhum dos dois for feito, uma fenda pode começar a se abrir. Escovar os dentes não é ato grandioso, mas sem pegar a escova, como fazê-lo? E sem dentes escovados, como inaugurar a manhã?

Um pequeno gesto pode não fazer falta no prumo do dia. Mas se tiramos toda uma sequência, colocamos em risco a estrutura. Gestos que são pequenos individualmente, tornam-se indispensáveis quando encadeados. Não botamos a água para ferver, não pegamos o pote do café, não afundamos a colher no pó. O dia terá que começar sem perfume, sem calor, sem gosto na boca, sem a energia da cafeína. O dia terá que começar sem começo. Ou, então, seremos obrigados a tomar um café em pé no bar da primeira esquina.

A vida é feita de pequenos gestos. Para escrever isto – contando o acento – , meus dedos comprimiram 34 vezes o teclado. Cada letra exige um movimento, cada palavra obedece a um pensamento que a organiza na frase. Nem eu levo isso em conta. Ingratidão que se desfaz neste fim de tarde de verão, quando a ordem do cotidiano volta a imperar sobre Ipanema.






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