Literatura

O silencioso aprendiz

“Sabe aquele silêncio que nem a espada mais afiada fatia? Esse silêncio é Deus”, disse o velho mendigo ao menino engraxate que lhe entregava um copo com água, trazida do chafariz.

“Mas Deus também pode ser outras coisas. Ele pode ser o verbo. E o verbo é algo que um analfabeto como eu não é capaz de entender. Mas o verbo pode se fazer carne viva. E se carne ele for, pode ser que os doutores o queiram matar. Então, é bom tomar cuidado com a letra, porque a sua ausência é falta e o excesso não garante nenhum acerto.”

O menino olhou o velho como se nada entendesse, mas com muita atenção.

“A pedra que mata o gigante, por exemplo, pode ser Deus. Mas ele pode ser o próprio gigante, também… Daí é bom tomar cuidado com as pedras.”

O menino olhou as pedrinhas espalhadas no chão e acenou positivamente com a cabeça.

“Tenho como certo que Deus pode ser borboleta. Já me disseram que um dia ele foi pombo. Se foi pombo, de certo pode ser borboleta, ou vagalume, ou louva-a-deus. Alguns já o viram no fogo. Outros falaram que ele é um homem com jeito de anjo. Ele muitas vezes anda com fome pela rua. Faz de conta que não tem o que beber e onde dormir. Por isso, menino, é preciso ter respeito. Tudo que é vivo merece respeito e tudo o que parece morto também. Posto que ninguém sabe medir a intensidade da vida das coisas.”

E o mendigo se levantou devagar. Seu rosto sulcado de sóis se contrapôs ao sol daquele poente. Seu rosto e o sol eram feitos de uma só luz.

E assim o velho retomou o seu itinerário sonolento, lento, letárgico, sob o olhar deslumbrado do menino engraxate. Passos à frente, volta-se ao menino e se despede:

“E não esqueça a gratidão por tudo o que a vida lhe dá, sem dizer se é bom ou se é mau, pois nunca se sabe se é no riso ou na tristeza, na feiura o na beleza, que o seu Deus mais está. Minha gratidão pela água, meu filho.”

O garoto sorriu, assertivo. A beleza dessas palavras morreria com ele, pois era um pobre e analfabeto menino mudo. Mas dentro de si bem que poderiam germinar. E ele olhou as pedrinhas do chão como mistérios. Os passarinhos são mistério, a água, as estrelas: tudo pode ser Deus! Pois Deus sempre está onde e quando nos puder encantar.

Nara Rúbia Ribeiro

Nara Rúbia Ribeiro - advogada especialista em Regularização de Imóveis, pós-graduanda e Direito Imobiliário. Atua em Goiânia - Goiás. É também editora-chefe da Revista Pazes.

Recent Posts

Filme proibido para menores de 18 anos é MAIOR ESTREIA DO MÊS no streaming; veja como assistir

Que tal um thriller psicológico que promete mexer com os nervos e a mente? "Santuário",…

2 dias ago

Esta série que acabou de chegar na Netflix está comovendo os assinantes de todas as idades

Em uma estreia recente que já está resonando com o público global, a Netflix colocou…

2 dias ago

Grupo Molejo é furtado no mesmo dia da morte do cantor Anderson Leonardo

De fato, a última sexta-feira, ontem, foi um dia difícil para o grupo Molejo. No…

2 dias ago

Calotes e despejos sem fim: QUEM SÃO e POR QUE mãe e filham moram no McDonald’s?

No coração do Leblon, uma das áreas mais valorizadas do Rio de Janeiro, uma situação…

3 dias ago

5 séries perfeitas para ver esse fim de semana na Netflix que vão te fisgar desde o 1º episódio

Nesta matéria, mergulhamos em cinco séries que estão moldando as conversas culturais e cativando audiências…

3 dias ago

Filme aplaudido de pé nos cinemas finalmente está na Netflix e você já pode assistir

Quando se trata de narrativas envolventes e performances impactantes, poucos filmes recentes capturam a essência…

3 dias ago