Música

O efeito da música sobre nós: Uma sonata de Beethoven e um livro de Tolstói

Confesso que sou novata no mundo da música clássica. Até poucos meses atrás, conhecia sobre música clássica o que quase todo mundo conhece: as passagens mais famosas, as músicas de comerciais e de filmes. O compositor que mais conhecia era Chopin, porque seus Noturnos me acompanharam em noites de insônia e acompanham meu filho até hoje na hora de dormir. Do resto, tinha um conhecimento bem senso comum.

Há alguns meses, comecei a me interessar um pouco mais por música clássica e, é claro, um universo novo se abriu para mim. Sem saber direito por onde começar, optei pelos três grandes nomes: Mozart, Bach e Beethoven. No começo, eu colocava algumas músicas e ouvia meio que sem um sentido certo; ouvia, tentava apreciar de verdade, achava que estava sendo “culta” fazendo isso. Até que parece que finalmente deu um “clique”: uma sonata específica, do Beethoven, finalmente conseguiu me mostrar como se ouve música clássica. Eu consegui ouvindo a linda sonata número 5 para piano e violino, conhecida como Spring, sentir a música clássica, suas vozes, os papéis do piano e do violino. Não sei direito como, mas essa sonata especificamente me fez sentir a música clássica e parece que me abriu de verdade um novo mundo.

Depois dela, vieram outras e, desde então, eu e a música de Beethoven estamos em um relacionamento sério – ainda que bem no início. Nessa onda de sonatas de Beethoven, outra me chamou a atenção, especialmente pelos agudos de violino: a sonata número 9, também para piano e violino, conhecida como Sonata de Kreutzer. Como tinha feito com as demais músicas que fui explorando, pesquisei mais sobre essa sonata específica e descobri algo que, confesso, não conhecia: há um livro chamado A Sonata de Kreutzer, de Leon Tolstói – o russo.

Fiquei muito curiosa para saber do que se tratava o livro e como poderia estar relacionado à sonata do Beethoven. Então, li o livro em sua versão digital. É um livro fino, de 87 páginas na minha versão (Edição portuguesa, tradução de Jorge Reis). O livro é riquíssimo em diversos pontos. Valeria um texto para cada ponto levantado, dentre eles, casamento, relações entre homens e mulheres, o machismo do século XIX na Rússia (e no mundo), o cristianismo de Tolstói e a forma como ele via o ideal cristão e a igreja, a relação com os filhos. Mas é apenas o aspecto da música que quero abordar aqui. A sonata que dá nome ao livro aparece somente mais para o final. Eu estava ansiosa para saber como ele colocaria essa sonata, que sinceramente não me soa como romântica, no livro.

No entanto, a parte da sonata trouxe uma das definições mais lindas sobre o efeito da música sobre nós que já li. É interessante que o personagem que narra a história não está em um bom momento para apreciar a sonata. Ele está muito irritado e desconfiado, porque a música seria executada por sua esposa ao piano e por um homem por quem ele desconfiava que a esposa estava apaixonada, ao violino. Sem dar spoiler sobre o livro, o que vale aqui é a descrição dele. Primeiro, ele fica muito irritado com esse “poder” que a música tem de nos levar a um estado diferente do que estamos.

“A música obriga a esquecermo-nos nossa verdadeira personalidade, transporta-nos a um estado que não é nosso. Sob a influência da música, temos a impressão que sentimos o que não sentimos; que compreendemos o que na realidade não compreendemos; que podemos o que não podemos”.

Ele estava irritado, porque queria mesmo ficar bravo, não queria se emocionar. A razão tinha que dominar, mas a música… ela liberta aqueles sentimentos e emoções enjaulados pela razão. A música faz aflorar nossas emoções, sem que deliberemos por isso. Ele não queria ficar alegre, mas como não se emocionar com a Sonata de Kreutzer?

Ele continua: “A música transporta-nos, de surpresa e imediatamente, ao estado de alma em que se encontrava o artista no momento da criação, confundimos nossa alma com a dele e passamos de um estado a outro sem saber porque o fazemos”.

E aí vem a parte mais bonita:

“Sentimentos novos, possibilidades até então desconhecidas revelaram-se em mim. Tudo era diferente da vida que até então eu vivera. Eu não podia avaliar o elemento que descobrira, mas a consciência deste novo estado dava-me alegria.”

“Sentia-me leve, alegre, toda a noite”.

“Sentimentos novos e desconhecidos até aí surgiam dentro de mim e dela [esposa]”.

Isso até acabou me remetendo ao finalzinho do livro A Náusea, do Sartre, quando o personagem ouve pela última vez a música que ele tanto gosta – que não é clássica -, antes de ir embora da cidade, e reflete sobre como o compositor e a cantora conseguem, de alguma forma, transcender de certa maneira a existência através da música. “Purificaram-se do pecado de existir. Não completamente, é claro – mas na medida em que um homem pode fazê-lo”. É como se a arte permitisse que o artista – seus sentimentos e emoções – permanecesse quase que independente de sua existência. Mas, certamente, as reflexões existencialistas de Sartre não têm a beleza das palavras de Tolstói sobre a música, nem é essa mesmo a intenção dele.

A sonata inteira tem 46 minutos, mas vale a pena ouvir, pelo menos o primeiro andamento (16 minutos iniciais), que foi o que encantou o personagem do livro. Claro que nem é necessário falar sobre a impecável apresentação da violinista alemã, Anne-Sophie Mutter, com o pianista americano, Lambert Orkis.

Revista Pazes

Uma revista a todos aqueles que acreditam que a verdadeira paz é plural. Àqueles que desejam Pazes!

Recent Posts

Já viu? Filmaço na Netflix que virou trend mundial já foi assistido por mais de 25 milhões de pessoas

Você está em busca de algo intrigante para assistir? Então talvez seja a hora de…

4 horas ago

Charmoso, encantador e poderoso: Este é o filme mais bonito que você vai ver na Netflix essa semana

Se você está procurando uma história que aqueça o coração com doses generosas de autenticidade…

4 horas ago

5 GRANDES MENTIRAS contadas em filmes e séries que chocaram o público

Os roteiristas adoram jogar com a expectativa do público, frequentemente nos surpreendendo com reviravoltas baseadas…

4 horas ago

Morre Maddy Baloy, TikToker de 26 anos que compartilhou sua luta contra o câncer terminal

No domingo, 28 de abril, Maddy Baloy, conhecida no TikTok por sua coragem ao documentar…

7 horas ago

Cabrini revela confissão que poderia ter evitado morte de Senna

Um anúncio que jamais desejamos oferecer ecoou por todo o país: "Ayrton Senna da Silva…

1 dia ago

Filme proibido para menores de 18 anos é MAIOR ESTREIA DO MÊS no streaming; veja como assistir

Que tal um thriller psicológico que promete mexer com os nervos e a mente? "Santuário",…

5 dias ago