“O problema é ter medo do medo”, por Ana Helena Ribeiro Tavares

Foi para isso – para que meus netos escolham a quem seguir – que passei cinco anos entrevistando pessoas que enfrentaram a ditadura. Enfrentaram com armas, dentro do Exército e fora dele; enfrentaram com batinas, na cidade e no campo; enfrentaram com canetas, microfones e câmeras; enfrentaram com a lei diante de um Estado de exceção.

Medo todos tiveram. Mas nenhum teve medo de enfrentar o medo. É esse o problema: ter medo do medo. E só quem luta numa ditadura é capaz de contar à democracia o que aquele medo tem a nos dizer. Para que nós e nossos netos entendamos, quem sabe, como o medo é usado para controle do homem pelo homem.

Difícil é explicar como é passar anos entrando nas casas de tantas pessoas que trazem a história dentro de si. Tudo o que acrescentou à minha vida, toda a bagagem preciosa que adquiri. Tantas curvas precisei fazer em minha própria estrada para conhecer os caminhos que estes grandes brasileiros trilharam. Nenhuma reta pagaria estas curvas.

Num mundo entregue à teologia da prosperidade, me dei ao luxo de visitar expoentes da Teologia da Libertação. Dois deles já falecidos: Dom Tomás Balduíno e Dom Waldyr Calheiros. Mantém-se vivo, porém, Dom Pedro Casaldáliga, a lenda que me fez cruzar o Brasil de ônibus rumo ao Araguaia.

Responsável pelo título do livro – ‘O problema é ter medo do medo’ – Pedro, como gosta de ser chamado, permanece com as portas de sua casa abertas. E para lá eu quero voltar para lhe entregar em mãos um exemplar. Para lá eu quero voltar para ter a certeza de que o ciclo foi completo.

Num mundo exilado nas cidades, me dei ao luxo de pisar na terra. De ficar com sapatos marcados para sempre, de ficar com o olhar fascinado para sempre. De conversar com índios, posseiros e latifundiários. De descobrir que no dia em que o homem dividir a terra acabará a guerra.

Num mundo em que impera a lógica da guerra, me dei ao luxo de conversar com militares das três Forças – da terra, do mar e do ar –, que sempre acreditaram na paz. Militares duramente punidos por sua opção pela legalidade. Punidos com seus sonhos tolhidos. Punidos por ver tolhido o sonho do Brasil com que sonhavam.

Entre o marechal Lott, com todo seu legalismo, e o general Mourão Filho, que trouxe o golpe de Minas, quero que meus netos possam escolher a quem seguir. Entre o brigadeiro Moreira Lima, já falecido, cujo sorriso inebriante tive a honra de conhecer, e o sanguinário brigadeiro Burnier, quero que meus netos possam escolher a quem seguir.
É preciso que meus netos saibam que é possível fazer voos gloriosos, como fez o comandante Mello Bastos, e, mais de 50 anos depois, passear nas ruas sem aplausos. Mas com a certeza do dever cumprido. É preciso que meus netos saibam que, ao contrário do que parece, ser bem-sucedido não é sinônimo de ser famoso.

Num mundo em que jornalismo é show, conversei com gente que fez e faz notícia sem querer ser notícia. Gente que tentou contar aos quatro ventos que aqui se vivia uma ditadura. Uma dupla de jornalistas com distintas visões me ensinou que a história não é “preto no branco”. E que atitudes ou omissões não podem ser desprendidas de contexto.
Num mundo mais copiado do que criado, conversei com quem usou a poesia, o cinema, a fotografia e a música contra a tirania. É inerente ao ser humano descobrir seus dons criativos quando se vê obrigado a driblar o arbítrio. É questão de sobrevivência se disfarçar em versos, películas, imagens e notas musicais.

Foi o cinema que, em plena ditadura, teve a coragem de lembrar que JK desenvolveu o país numa democracia. Foi a fotografia que teve a coragem de tomar o Forte infiltrada no meio dos militares. Foi a poesia que teve a coragem de perguntar “Que país é este?”. Foi a música que teve a coragem de gritar “Cala a boca, moço!”.

Aos jornalistas Alberto Dines e Milton Coelho da Graça, a Silvio Tendler, Evandro Teixeira, Affonso Romano de Sant’Anna e Sérgio Ricardo, o meu muito obrigada por me mostrarem que é possível usar canetas, máquinas de escrever, gravadores, câmeras fotográficas, filmadoras e microfones como armas em prol daquilo no que acreditamos.

Ah, sim, conversei com quem pegou em armas de fogo. Gente que matou para não ser morta, gente que viveu para ter razão. Mas, ainda hoje, há quem lhe negue razão. A estes uma única pergunta: se os militares e civis apoiadores da ditadura acreditavam estar fazendo coisas justas por que tão poucos contam para a gente o que fizeram?

O último comandante vivo da Ação Libertadora Nacional (ALN); antigos integrantes do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8); e da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR); três das maiores organizações guerrilheiras que lutaram contra a ditadura, contam no livro suas histórias, da mesma forma como nunca tiveram medo de contar.

Num mundo em que a justiça não é para todos, conheci gente que esfregou a lei na cara de generais. O AI-5 negou o habeas corpus, espalhou terror com esquadrões da morte. Nada disso os freou. Nada os impediu de sobreviver para hoje dizer que a tortura ainda existe, mas não é mais prática institucional, não é mais política de governo.

Hélio Bicudo, que aos 92 anos corria dois kms por dia; Modesto da Silveira, que me provou que o nome de uma pessoa pode representar o seu modo de vida; Rosa Cardoso e Marcelo Cerqueira. Travaram a luta do bom combate e viveram para dizer que valeu a pena. Viveram para ver um país ainda imperfeito, mas onde a justiça pode “chegar lá”.

E se valeu a pena ontem, continua valendo. É isso o que mostram duas fundadoras de entidades que se dedicam à luta por Direitos Humanos e à rememoração dos horrores da ditadura. A história da Comissão de Direitos Humanos da OAB e do Grupo Tortura Nunca Mais está muito bem representada no último dos sete capítulos do livro.

Eu também ouso dizer que valeu a pena. Remei contra a maré, ouvindo de libertários a liberais. A idéia de uma série de entrevistas nasceu em 2009, sugerida pelo jornalista Antonio Martins, do site “Outras Palavras”, do “Le Monde Diplomatique”. Antonio achava ser uma boa que eu começasse a carreira agarrando um tema e apurando-o.

O tema nasceu antes, em 2008, após a leitura de artigo sobre os 40 anos do AI-5, assinado pelo sociólogo Gilson Caroni Filho, meu eterno mestre. Aquela leitura, com dados aterradores que eu desconhecia e que tantos jovens desconhecem, detonou em mim a vontade de gritar ao mundo a história do meu tio – torturado durante a vigência do AI-5, sem que pertencesse a nenhuma organização política.

Fiz um comentário ao artigo do Gilson e aquele comentário virou um artigo meu, publicado em janeiro de 2009 como editorial de uma revista sindical. A partir daí, passei a mergulhar na temática da ditadura e na necessidade de entender que influência aquele período teve sobre o Brasil que vivemos hoje.

Em 2010, quando eu martelava a sugestão de agarrar um tema ao qual me dedicar, o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve impunes os torturadores da ditadura. Foi a gota d’água. Decidi que o que aconteceu ao meu tio não poderia acontecer aos meus netos. Ao menos não sem que, com a minha arma – a caneta –, eu tentasse impedir.

O resultado já está nas livrarias. Tenho hoje 31 anos. Meus netos lerão talvez daqui a 62 anos, ainda a tempo de contar para os filhos deles. Porque a História está sempre a tempo de ser contada, em especial quando antes não houve oportunidade disso.

Numa ditadura, não há oportunidade de contar o que a ditadura faz. Se você conta, é preso, torturado. É isso o que fingem não entender os que dizem que não havia corrupção na ditadura. Como era possível denunciá-la? Como era possível criticar governos da maneira como hoje se critica? Como era possível escolher a quem seguir?

Meus netos escolherão a quem seguir. Escolherão como lutar. Serão livres, libertários ou liberais. Meus netos serão o que quiserem ser. Viverão num mundo que respeite suas escolhas. E poderão até não se orgulhar da avó. Mas terão o direito de escolher entre orgulhar-se ou não. É essa a luta que me move.
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Obs: texto escrito originalmente para a revista Odara, da Faculdade de Letras da UFRJ.
Título original: Para que meus netos escolham a quem seguir
Ana Helena Tavares, jornalista.






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