A poesia, a beleza e a resiliência em “Homens imprudentemente poéticos”, de Valter Hugo Mãe

Por Nara Rúbia Ribeiro
Diante das adversidades da vida, cada qual encontra, caso queira, o seu próprio caminho para a poesia. Foi a trilhar esse caminho que encontrei o livro Homens imprudentemente poéticos*, de Valter Hugo Mãe. Também foi nesse caminho poético que o livro fora escrito e esse é o caminho dos personagens centrais.

Hugo Mãe é sempre capaz de traduzir a sua poesia numa prosa leve e saborosa que nos leva a uma leitura contemplativa, singular. Neste livro não foi diferente. Ele conta com maestria a história de Ítaro e Saburo, vizinhos que, no secreto de suas almas, passaram a arquitetar a morte um do outro.

revistapazes.com - A poesia, a beleza e a resiliência em "Homens imprudentemente poéticos", de Valter Hugo MãeA história se passa numa aldeia pequenina de um Japão longínquo, ainda entregue aos mitos, às lendas, à magia da palavra na tentativa de preencher as lacunas do saber.

Ítaro, jovem artesão que cedo perdera os seus pais, é um exímio fazedor de leques. Mas nascera, sobretudo, com um dom peculiar: era capaz de ler, na morte, as entrelinhas da vida. Ao lado de sua irmã, a cega e encantadora Matsu, ele necessita administrar os seus dramas pessoais e intransferíveis: o antever o crepúsculo da própria existência e a compulsão por novas visitas premonitórias do futuro.

Saburo é velho oleiro dedicado à esposa que, já sabedor do destino fatídico da mulher – alertado pelas premonições de Ítaro – foi incapaz e evita-lo. Viúvo, passou a acreditar que ao cultivar um jardim ao pé da floresta apascentaria o coração dos deuses, domaria as feras da morte e, quem sabe, teria de volta a mulher amada.

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A beleza do jardim de Saburo enfeita a entrada de uma floresta muito procurada por suicidas. Uma oferenda última de amor ao coração de quem, desprovido de esperança, buscasse o consolo no colo da morte. Portador de uma mente cuja pureza nos remete à angelitude infantil, Saburo pendura o quimono da esposa em uma madeira em seu quintal e o faz tremular sob o vento. Vendo, no quimono, a presença e a lacuna da mulher. E quem de nós não possui, diante da morte de um ser amado, um quimono mental a tremular com a força dos ventos de nossas lembranças?

As diferenças entre os personagens centrais cada vez mais se acentuam ao longo da trama. Diante, cada qual, de sua pessoal incompletude, enxergam, um no outro, a abundância daquilo que lhes falta, fazendo com que o solo de suas almas esteja propício à mágoa e ao ódio.

Irmã de Ítaro, a menina Matsu nascera cega e projeta o mundo exterior com os adornos de sua beleza íntima: delicado, terno. Apesar do escuro dos olhos, ela tudo enxerga nas dimensões e na imensidão da própria alma. Matsu é sempre auxiliada por uma criada, senhora Kame, a quem chama de “mãe perto”, prestativa, maternal. Uma mulher sem passado cuja preocupação primeira é cuidar e amar uma família que, não sendo sua, foi capaz de acolhe-la. Estas duas almas femininas acrescentam delicadeza, dor e resiliência à história.

A narrativa é muito envolvente e o desfecho nos fere de excessiva ternura.

Neste livro, a morte e a vida não se contrapõem. Elas se complementam. A morte nos acorda da sonolência da vida. Faz com que olhemos para dentro, na expectativa de encontrar a poesia adormecida em meio à noite dos dias, enterrada na pressa cotidiana do existir, na força que só os resilientes conhecem.

A escrita de Valter Hugo Mãe é como uma tela de rara beleza que primeiro nos leva à serena contemplação. Em seguida, a nossa alma passa a viajar nos detalhes das imagens, na alma dos seres e das coisas, no abstrato, nas entrelinhas. Mergulhados ali, questionamo-nos. Nesse sentido, a beleza é puramente filosófica. Ela nos leva às profundezas do ser, às entranhas de nós mesmos, e nos faz, vez ou outra, sentir o suave perfume das flores que brotam à beira dos nossos abismos. E também nós, leitores, enxergamo-nos “imprudentemente poéticos”, na humanidade pungente dos escritos de Valter Hugo Mãe.

“Por vezes, escolhiam a fome em troca de um mínimo de sossego. A felicidade podia acontecer num ínfimo instante, ainda que a fome se mantivesse e até a sentença para sofrer. O sofrimento nunca impediria alguém de ser feliz.”

(trecho do livro)
*Para saber mais sobre o livro, basta clicar na imagem abaixo:revistapazes.com - A poesia, a beleza e a resiliência em "Homens imprudentemente poéticos", de Valter Hugo Mãe






Nara Rúbia Ribeiro - advogada especialista em Regularização de Imóveis, pós-graduanda e Direito Imobiliário. Atua em Goiânia - Goiás. É também editora-chefe da Revista Pazes.