Entrevista à poeta moçambicana Hirondina Joshua

Por Ramiro Torres
– Palavra Comum: Que representa para ti a literatura?

– Hirondina Joshua: Não sei responder. A história literária e a teoria literária têm tentado responder essa questão secular. Hoje, até na literatura, os gêneros fundem-se, tal como a literatura baseada em reportagem real de um acontecimento. No cinema o registo documental mescla-se com a ficção.

Julgo que deve ter sido esta linha de ideia que levou o Nobel deste ano, de entender a literatura como algo amplo.
Sinceramente, senti o prémio como uma traição à literatura, visto Dylan ser essencialmente um músico e letrista com muita pouca obra publicada tanto em poesia como ficção. Se fosse um prémio de Artes estaria bem. No entanto esta opinião em nada diminui a importância de Bob Dylan num contexto mais amplo, social até.

– Palavra Comum: Que conheces da Galiza e das suas relações com a Lusofonia?

– Hirondina Joshua: De Galiza conheço pouco, tenho conhecimento que as línguas faladas são o galego e o espanhol. Um amigo galego disse-me que gostam muito de sardinha.

– Palavra Comum: Como entendes -e practicas, no teu caso- o processo de criação literária?

– Hirondina Joshua: É um processo despropositado, sendo natural não se apercebe como se cria, é espontâneo. A leitura da substância do mundo, o olho com que pomos a essência das coisas é algo que nos ultrapassa.

Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre as artes entre si (poesia, plástica, fotografia, etc.)? Como é a tua experiência nestas (inter)relações?

– Hirondina Joshua: Muito interessante esta pergunta porque a primeira ideia que aparece é aquela questão que não nos deixa em paz: “O que é Poesia?”

Não me atrevo a definir. Vou dizer apenas que poesia tem a ver com a visão da alma. Uma pedra ou uma casa podem vistas sob várias perspectivas. A metafísica, a essência das coisas, cobrem o espaço e a substância. Nesta linha de pensamento, as artes plásticas, a fotografia, etc., são poesia.

A relação entre estas artes é intrínseca, independente e autónoma de qualquer vontade humana, ela é uma conversa natural.
Já trabalhei com um amigo, João Timane, e já trabalhamos juntos em mais ou menos 3 telas e gostei da experiência, apercebi-me que a poesia é uma coisa que anda em tudo, está em tudo.

Gosto de ser fotografada (risos), apesar disso ser muito suspeito simpatizo-me com o resultado. Vou trabalhar com um fotógrafo desta vez não para fazer fotografia, para escrever fotografia.

– Palavra Comum: Quais são os teus referentes criativos (num sentido amplo)?
– Hirondina Joshua: Alguns dos livros que gostei de ler:

“O gato e o escuro” – Mia Couto
“Elogio da loucura” – Erasmo de Roterdão
“Neighbours” – Lília Momplé
“Conto Homônimo: o Ovo e a Galinha” – Clarice Lispector
“Niketche” – Paulina Chiziane
“Paraísos artificiais” – Charles Baudelaire
“Xicandarinha na lenha do mundo” – Calane da Silva
“As Ondas” – Virginia Woolf
“Ualalapi” – Ungulani Ba Ka Khosa
“Uma Faca nos Dentes” – António José Forte
“Ácia, O Primeiro Amor, Águas Primaveris” – Ivan Turguenev

– Palavra Comum: Que vínculos achas entre Arte(s) e Vida?

– Hirondina Joshua: Bem, arte é criação, ainda que dentro de uma outra criação. Vida é também uma criação a meu ver particular, e inconsciente mesmo que indirectamente copiemos os outros.

Entre Arte e Vida há um elemento comum que é o desafio, não o de sermos superiores aos outros mas de sermos superiores ao outro, o que mora em nós.

O difícil não é escrever poesia ou trabalhar em qualquer arte, mas incorporar isso no nosso modo de ser, ser o poema em cada instante, o poema constante que escrevemos no sangue.

Viver com fidelidade é para mim o maior desafio, tanto a arte quanto a vida possuem. Por outro lado, a arte é uma idiossincrasia implícita, é ambígua e, essa ambiguidade resulta do facto do receptor poder se apartar de uma realidade para outra.

Tanto a vida assim como a arte têm o factor surpresa. Nunca ninguém chega a saber efectivamente o que vai acontecer ao longo da história, nem mesmo o que realmente houve em tempo posterior. Ou num poema o que é será isso mesmo? A ilusão, como tão bem referiu Lavoisier, “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Não existe verdade. Aquilo que se julga ser é e não é. Não por erro mas pela própria natureza das coisas. A possibilidade e o mistério fazem surgir o movimento. A cortina é o fio de sedução. Ouso dizer que arte é coisa de outro mundo mas neste mundo. Então essa relação intrínseca com a vida. Seria assim: quem nasceu primeiro, a arte ou a vida?

– Palavra Comum: Que projectos tens e quais gostarias chegar a desenvolver? Fala-nos, mais em concreto, de Os Ângulos da Casa…

– Hirondina Joshua: Gostava de num futuro muito breve trabalhar com crianças. Nesta grande luta que o meu país tem de incentivar a leitura e a escrita, quero contribuir.

Acredito que do mesmo modo que se dá uma escova a uma criança para ela aprender a escovar os dentes, pode-se dar um livro. E esta mesma criança vai crescer olhando o livro não como uma chatice mas como um companheiro, para além de que terá a oportunidade a meu ver, de crescer, ser adulto e nunca deixar de ser criança. Apesar de viver dentro de um mundo convencional, ela vai ser muito própria.
Os Ângulos da Casa – é uma casa metafísica.
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POEMAS
*
Há uma sala pequena que leva ao voo
a cabeça inclina-se devagar
confronta o lado insano da parede
na sala
os móveis desarrumados tornam-se imóveis
diante dos olhos e suas veias
na estante, o tempo rói o dorso do osso
Ai! Que vem a ser isto?
Os móveis mobilizaram suas energias para um ser tão pequeno e quase sem alma.
Sim, diga-se: petit ou minúsculo tanto faz.
Aqui nomes não alteram a combustão do solo.
A terrena condição, fusão da química e física ou electrões e a gravidade. Bem se vê: a verdadeira gravidade é a porta que canta com tons graves a aguda substância da existência. E quem aí está para ouvi-la?
Quem aí está para senti-la? Os dedos se foram, a cabeça se foi, toda biologia se foi. Toda ciência se foi. Resta a “aicnêic”, cá por mim o inverso vale, se é que a isto podemos chamar de: conhecimento sistemático; pondo a coisa motora da metafísica abaixo.
*
A voz do Tempo
Fia na armadura da emoção.
– Querem deusificar o canto, o manto da esperança. Eu cá dentro, fora de mim não tenho olhos.
-Querem engolir a veia. Eu cá fora, dentro de mim não penso.
A voz do Tempo vaga no músculo incerto. Não é fêmea, não é macho. – E ainda bem! Assim morro pouco.
– Sou igual a todos humanos. Capaz de amar e matar na mesma intensidade.
Do falo a escrita não precisa, ela por si pode urinar e fazer amor.
Ai, dói isto de se pensar que a escrita precisa de um corpo táctil. E erecto.
*
Se for para entrarmos entremos com o corpo todo e depressa.
Leais à Terra e ao fragmento da Humanidade. Entremos sem
recuos no instante terrestre.
Ai dor suprema.
Ai cor invisível. Indivisível.
Se for para entrarmos entremos com a unha toda e a tola
magnitude de sermos estrangeiros. Espelhos, de dentro iniciamos:
– dividimos o escuro e separamos as águas.
Se for para entrarmos entremos com o corpo todo e depressa e
usando a porta da frente.
*
Visto
na
epiderme
a
gestação
nua
da raça.






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