– “Dotora”, a senhora sabe fazer o “a”?

Eu não vejo graça em gente que conta vantagem sobre artigos de luxo, viagens caras, restaurantes sofisticados. Assusta-me quando alguém chega dizendo de seus títulos e se apresenta como “doutor”. Mais assustada fico quando alguém me chama de “doutora”. Nas primeiras vezes em que assim fui chamada, senti uma imensa vergonha, como se fosse algum deboche que colocasse às claras tudo aquilo que reconheço não saber.

Eu gosto de conversar com gente simples. Gente que gosta de andar descalça, que não liga para etiquetas, títulos, status… Que não liga a mínima se tiver que comer sem garfo ou faca, que não se angustia com a ausência de guardanapos, que pouco entende de grifes, marcas ou coisas do gênero.

Dia desses, visitou-me uma senhora de cerca de 70 anos, dona Maria. Ela acabara de conseguir a guarda de uma menor: a Rosa, de quem ela já cuidava desde pequenininha e a levou consigo. Chegaram à sala em que eu fazia atendimento no Juizado da Infância e Juventude e logo percebi que nem a dona Maria e nem a Rosa fazia conta da realidade das coisas. Olhavam para os lados, sorriam. Olhavam para cima, também sorriam. Brincavam com as próprias mãos. Dona Maria tinha um ar um tanto mais apreensivo, temendo alguma má criação da menina.

Apressei-me, curiosa para saber do que se tratava. A Rosa é uma menina com desenvolvimento mental incompleto. Loira, 15 anos de idade, de olhos amendoados e ternos. Vive não aprisionada, mas livre em seu mundo pessoal, em seu universo mental adornado de mais mistérios e mais fantasias que o nosso, mas, seguramente mais encantado que o nosso, mais rico, mais lúdico, mais humano.

Elas necessitavam de um benefício previdenciário e procuraram-me para isso. Dona Maria não soube responder nada do que perguntei, assim, analisei a documentação e coletei, após alguns minutos de leitura, os dados necessários para ajuizar a ação. Enquanto isso, a Rosa ainda sorria e brincava com as mãos, olhando-me de modo envergonhado, enquanto eu fazia as anotações.

Terminada a tarefa séria, perguntei:

– Rosa, você está na escola? Sabe ler e escrever?

No que ela respondeu-me:

– Eu estudo. Eu aprendi o “a”, mas já esqueci.

Deus, que vontade passar o restante da tarde conversando com a Rosa. Descobrindo que encanto ela via nas mãos, na parede, no teto, descobrindo a beleza de seu mundo interior, a pureza da sua alma quase infantil.

Insisti:
– Como assim, esqueceu o “a”, Rosa?

Ela, sem vexame:

– Tem nada não. Amanhã eu lembro de novo.

E saíram a Rosa e a sua guardiã Maria, pessoas que não davam fé da sobriedade do mundo. Não mensuravam suas limitações psicológicas, sua pobreza material, não se importavam com os seus pés sujos de poeira, com a unha suja de carvão, com seus cabelos despenteados.

Ao saírem, a Rosa se curva e pergunta para a dona Maria:

– Como ela chama?

– Dotora, ela chama dotora.

Daí, a Rosa grita da porta:

– Dotora, a senhora sabe fazer o “a”?

Eu fiz um sinal positivo com a cabeça e pensei comigo: Não, Rosa, eu não sei. Ao menos não sei fazer o seu “a”, ser misterioso e mutante, que chega e acontece e logo se esvai. Estou presa a um mundo de “as” fixos, rígidos e permanentes. Um mundo de letrados tolos, doutores vaidosos e letristas pouco humanos. Um mundo onde viver não é essencial e sim o ostentar a vivência. Um mundo que você não vai querer conhecer, Rosa. O meu “a” não chega ao chinelo do seu.

Texto originalmente publicado no site Conti outra.






Nara Rúbia Ribeiro - advogada especialista em Regularização de Imóveis, pós-graduanda e Direito Imobiliário. Atua em Goiânia - Goiás. É também editora-chefe da Revista Pazes.